sábado, 8 de março de 2008

Por todas as mulheres

Imagem: Christian Asuh


No pequeno universo onde nasci e cresci, as mulheres eram a esmagadora maioria. Figuras de traço forte, liam muito, viam teatro e cinema, eram trilingues, viajavam sózinhas para países longínquos, dominavam todos os assuntos, opinavam com veemência, eram imaginosas e proviam ao bem-estar da nossa comunidade. Havia nelas pinceladas de Maria e Marta, de Judite e de Rute, de Miranda e Isa Gliver. Hoje, à distância, revejo-as nos romances de Alejo Carpentier, Isabel Allende ou García Márquez. Relembro-as na "longa vida de Mariana Urbia" ou na narrativa dos amores, vida e morte de Lívia Drusa.

Talvez por isso eu resistisse a assumir por inteiro a "desgraça feminina", a luta pela "libertação da mulher", pela conquista da igualdade pura, ou, como hoje se diz, pela igualdade de oportunidades, como uma luta própria.

É que, se é certo que a mulher não é igual ao homem, também é certo que as mulheres não são iguais entre si. E esta revolução pacífica, sem mortos nem feridos, tornou este facto bem claro. Sempre desconsiderei a mulher "sofredora", suspirante, ansiosa, escrava de dever, passiva e normalmente muito maçadora. Sempre me irritou a mulher "infra-estrutura", a grande mulher atrás do grande homem, uma espécie de manager furioso de um protagonismo alheio e partilhado da pior forma. E que dizer da mulher "bem sucedida" que enche as páginas das revistas femininas com receitas instântaneas de sucesso ou da mulher "executiva", que nas novas técnicas publicitárias veio substituir o modelo, já gasto e censurável, da "mulher objecto", carregada de gadgets inúteis, sem olheiras, stress ou nariz brilhante?

Dou ainda de barato o discurso cansativo e estéril, que tornou surdos tantos ouvidos e secou tantas boas vontades, da "mulher ao poder por ser mulher" e o efeito perverso de se ter padronizado um comportamento de minoria de um grupo que é hoje estatisticamente maioritário. É que sempre me pareceu absurdo que as mulheres, constituindo uma expressão fortíssima do eleitorado, vejam no homem o único culpado da sua sistemática inelegibilidade para cargos do poder.

Mas, apesar de tudo, confesso ter alinhado várias vezes, com convicção e empenho, nas fileiras de quantas levantam vozes e bandeiras pela causa da mulher. Por aquelas mulheres polivalentes e multimodais, capazes de abarcar sempre novas tarefas em acumulação, por tradição gestoras de conflitos e, por natureza, apaziguadoras, pedagógicas e prospectivas, amantes do médio e longo prazo em detrimento do imediatismo, capazes por isso de desempenhar, com limpidez e vigor, o futuro.

Por aquelas mulheres que vivem dois dias em cada dia, duas vidas em cada vida, chegando a tudo e a todos dentro de uma rigorosa e honesta contabilidade que mantêm com o mundo e os outros.

Por aquelas mulheres que transpõem para as novas actividades o seu código de valores próprio, assumindo uma posição mais ética na conquista e no exercício do poder e que, na hora das decisões, recusam o corte entre o concreto e o quotidiano e a sua percepção do mundo, feita de cabeça e coração.

Por essas levantei bandeiras e também por muitas outras, traiçoeiramente encerradas num universo onde o ciclo do sofrimento, da humilhação e do cansaço parece não ter fim. Mulheres lançadas, indefesas e solitárias, numa luta quotidiana de sobrevivência singular e plural, desdobradas em quatro para equilibrar, apaziguar, prover e repartir.

A existência de um "Dia da Mulher" é muito questionável. O que se celebra, que efeito se quer produzir, o que significa essa distinção - que eu saiba não existe o "Dia do Homem" - num mundo onde as mulheres estão em maioria? Não sei ao certo. Para mim, o dia 8 só faz sentido se conseguirmos pôr em evidência a diferença entre o discurso oficial e a realidade, entre as leis que abundantemente produzimos e as causas que, ainda hoje, impedem as mulheres de fazerem, com liberdade, as suas escolhas. O meu dia 8 é para isto mesmo.

Maria José Nogueira Pinto, no Diário de Notícias [6 de Março 2008]

3 comentários:

Smootha disse...

O dia da mulher, é todos os dias. Pena que se continue a marcar datas, para mostrar que "está tudo bem". :)
Um bom dia, uma boa semana e um desafio para ti no meu blog :D
Beijo grande

Anónimo disse...

Café com novo rótulo... Gostei!!
Que tenhas uma boa semana!

Anónimo disse...

" Por todas as mulheres " agradeço por suas palavras tão verdadeiras. Parabéns Maria José!
Grande abraço,
Maria Emília
São Paulo - Brasil